Por Emerson Jose
Como crítico musical, analisarei a música "O Papa é Pop", da banda brasileira Engenheiros do Hawaii, lançada em 1990 no álbum homônimo.
A análise abordará a intenção do autor, Humberto Gessinger, o contexto da composição, a letra e os elementos musicais, com uma perspectiva crítica que considera tanto o conteúdo lírico quanto a sonoridade e o impacto cultural.
Contexto e Intenção do Autor
Lançada em 1990, "O Papa é Pop" reflete o auge da globalização e da cultura de massa no final dos anos 1980 e início dos 1990, período marcado pela consolidação da democracia no Brasil, o avanço do consumismo e a influência crescente da mídia. Humberto Gessinger, vocalista, baixista e principal letrista da banda, já era reconhecido por suas letras densas, repletas de ironia, paradoxos e críticas sociais. Segundo o próprio Gessinger, a música não é uma crítica direta à Igreja Católica ou à figura do Papa, mas uma reflexão sobre a onipresença da cultura pop, que transforma até instituições milenares, como o papado, em produtos de consumo midiático.
A inspiração para a música veio de um momento histórico: a visita do Papa João Paulo II ao Brasil, onde ele foi fotografado tomando chimarrão, uma imagem que simbolizava a popularização de uma figura tradicionalmente distante. Essa foto, inclusive, tornou-se a capa do álbum. Gessinger viu nesse episódio uma metáfora perfeita para a absorção de tudo e todos pelo "liquidificador" do pop, onde nada escapa à banalização e à comercialização. Além disso, a música faz alusão ao atentado sofrido por João Paulo II em 1981, reforçando a ideia de que até figuras sagradas estão vulneráveis à violência simbólica (e literal) da exposição midiática.
A intenção de Gessinger era dupla: por um lado, criticar a superficialidade e o consumismo desenfreado da cultura pop; por outro, reconhecer que a própria banda, ao alcançar sucesso comercial, também se tornara parte desse sistema. Em entrevistas, ele afirmou que a música reflete a maturidade da banda em assumir seu "lado pop" e questionar a falsa ingenuidade de bandas de rock que negavam sua relação com a indústria musical. Assim, "O Papa é Pop" é tanto uma crítica quanto uma autocrítica, um comentário irônico sobre a inevitabilidade do pop em um mundo globalizado.
Análise da Letra
A letra de "O Papa é Pop" é estruturada em versos curtos e repetitivos, com um refrão marcante que reforça a ideia central: "O Papa é pop, o Papa é pop / O pop não poupa ninguém".
A linguagem é direta, mas cheia de imagens e metáforas que convidam à reflexão.
Abaixo, destaco os principais temas e trechos:
Crítica à Cultura de Massa e ao Consumismo
Logo na primeira estrofe, Gessinger aponta a superficialidade do consumo cultural:
"Todo mundo tá revendo o que nunca foi visto / Todo mundo tá comprando os mais vendidos / É qualquer nota, qualquer notícia / Páginas em branco, fotos coloridas"
Esses versos sugerem que a sociedade consome conteúdos reciclados, apresentados como novidades, mas que, na verdade, carecem de profundidade ("páginas em branco").
A expressão "qualquer coisa que se mova é um alvo" reforça a ideia de que a mídia transforma tudo em mercadoria, explorando qualquer evento ou figura para gerar audiência.
Banalização do Sagrado
O refrão, com a repetição de "O Papa é pop", é a espinha dorsal da música. A escolha do Papa como símbolo não é aleatória: ele representa uma figura de autoridade espiritual, mas, ao ser "pop", é reduzido a um produto cultural, sujeito às mesmas regras do mercado que celebridades efêmeras.
A menção ao atentado ("O Papa levou um tiro à queima roupa") amplifica essa ideia, sugerindo que a exposição midiática traz vulnerabilidade, mesmo para ícones intocáveis.
Outro trecho que reforça a banalização é:"Toda catedral é populista, é pop / É macumba pra turista".
Aqui, Gessinger critica como até espaços sagrados, como catedrais, são transformados em atrações turísticas, perdendo sua essência espiritual para atender à lógica do entretenimento.
Questionamento da Autenticidade na Música
A letra também reflete sobre a própria indústria musical:
"Mas afinal? O que é rock’n’roll? / Os óculos do John ou o olhar do Paul?"
Essa pergunta alude à superficialidade da cultura pop, que muitas vezes valoriza elementos estéticos (como os óculos de John Lennon) acima da essência artística (o "olhar" de Paul McCartney). É uma crítica à fetichização de ícones culturais e à perda de significado em detrimento da imagem.
Efemeridade e Rotatividade
Versos como "Uma palavra escrita a lápis / Eternidades da semana" e "Qualquer coisa quase nova" destacam a transitoriedade da cultura pop, onde tudo é descartável e rapidamente substituído.
A "palavra na tua camiseta" e "o planeta na tua cama" sugerem como ideias e símbolos são reduzidos a slogans ou objetos de consumo, sem profundidade ou permanência.
Ironia e Autorreferência
A inclusão de backing vocals dos Golden Boys e do Trio Esperança no refrão é um toque irônico, já que esses grupos representavam o pop mais comercial da época. Além disso, a música "Perfeita Simetria", que fecha o álbum, usa a mesma melodia de "O Papa é Pop", reforçando a ideia de fórmulas repetitivas na música pop.
Gessinger admitiu que essa escolha foi uma provocação, brincando com a autorreferencialidade e a lógica comercial do pop.
Análise Musical
Musicalmente, "O Papa é Pop" marca a transição dos Engenheiros do Hawaii para uma sonoridade mais pop, sem abandonar as raízes do rock. O álbum, produzido pela própria banda, incorpora elementos como teclados, bateria eletrônica e guitarras limpas, criando um som mais acessível em comparação com trabalhos anteriores, como A Revolta dos Dandis (1987).
Estrutura e Melodia: A música tem uma estrutura simples, com versos curtos e um refrão cativante, características típicas do pop. A melodia é animada, com um riff de guitarra marcante e um teclado que adiciona um toque oitentista. O uso de backing vocals reforça o caráter pop e irônico da faixa.
Instrumentação: O baixo de Gessinger é proeminente, com linhas melódicas que dialogam com as guitarras de Augusto Licks. A bateria eletrônica, programada em uma Alesis HR-16, dá um ar moderno para a época, enquanto o órgão Hammond acionado por pedaleira MIDI adiciona texturas.
Dinâmica: A música alterna momentos de tensão (versos) com explosões no refrão, criando um contraste que mantém o ouvinte engajado. O solo de guitarra de Licks, com efeitos de distorção e delay, é um destaque que preserva a identidade roqueira da banda.
A produção reflete a intenção de Gessinger de "jogar poeira na engrenagem" do pop, como ele mesmo disse, abraçando elementos comerciais, mas com um toque de ironia e experimentação.
Impacto Cultural e Recepção
"O Papa é Pop" foi um marco na carreira dos Engenheiros do Hawaii, consolidando a banda como uma das maiores do rock brasileiro na época. O álbum vendeu mais de 350 mil cópias, alcançando disco de platina, um feito impressionante em um ano de crise econômica no Brasil (Plano Collor). A música tornou-se um hino do rock nacional, tocada até hoje em bares e shows, e sua letra continua relevante em um mundo dominado por redes sociais e cultura de influencers.No entanto, a banda enfrentou críticas. Alguns jornalistas da época, como os da revista Bizz, acusavam Gessinger de elitismo ou de letras excessivamente herméticas. A música também gerou polêmica por supostamente profaná-la figura do Papa, embora Gessinger, que se declarou católico, tenha negado qualquer intenção de ofender. A participação de grupos pop como Golden Boys no refrão e o pedido de desculpas irônico a Lulu Santos no encarte (devido a uma treta anterior) reforçam o tom provocador da banda.
Avaliação Crítica
"O Papa é Pop" é uma obra-prima do rock brasileiro, que combina crítica social afiada com uma sonoridade acessível e cativante. A letra de Gessinger é um espelho da sociedade consumista dos anos 1990, mas sua relevância persiste em uma era de viralização e superficialidade digital. A escolha do Papa como símbolo é brilhante, pois encapsula a ideia de que nada escapa à lógica do mercado, nem mesmo o sagrado. Musicalmente, a faixa equilibra o rock característico da banda com elementos pop, mostrando a versatilidade de Gessinger, Licks e Maltz. A produção, embora datada em alguns aspectos (como o uso de bateria eletrônica), é eficaz em transmitir a energia e a ironia da letra. A autorreferencialidade (como a repetição da melodia em "Perfeita Simetria") e as provocações (como os backing vocals pop) adicionam camadas de significado, tornando a música um comentário sobre si mesma.
Como ponto crítico, a letra pode ser vista como excessivamente cínica por alguns, e a repetitividade do refrão, embora funcional, pode soar redundante em audições prolongadas. Além disso, a crítica à cultura pop, embora perspicaz, não oferece alternativas claras, o que pode fazer a música parecer mais uma constatação do que uma proposta de mudança.
"O Papa é Pop" é uma análise mordaz da cultura de massa, escrita por um Humberto Gessinger no auge de sua criatividade. A intenção do autor era expor a onipresença do pop, que absorve e banaliza tudo, desde o Papa até a própria banda, enquanto reflete sobre a autenticidade na música e na sociedade. A letra, com suas metáforas e ironias, aliada a uma sonoridade pop-rock vibrante, faz da música um clássico atemporal, que continua a ressoar em um mundo cada vez mais dominado pela lógica do espetáculo. Como Gessinger canta, "o pop não poupa ninguém" – e essa verdade permanece tão válida hoje quanto em 1990.
Comentários
Postar um comentário